Trajectória recente de Lisboa
Sabemos que o centro de Lisboa sempre foi um território partilhado por diferentes classes sociais. É certo que os mais ricos viviam em casas maiores do que os mais pobres, é certo que alguns bairros tinham zonas melhores do que outras, e também é sabido que o congelamento das rendas, herdado do tempo do Estado Novo, muitas vezes criou situações anacrónicas. Mas concretamente o que tínhamos, até há poucos anos, era uma situação única para uma capital: um espaço público partilhado.
Hoje caminhamos para um modelo de cidade (já temos?) exclusiva dos turistas e dos muito ricos.
A quem acha que era inevitável esta transformação da cidade, acompanhada pela forte subida de preços no imobiliário, porque aconteceu em todas as capitais, respondemos que é exactamente por sabermos que aconteceu, e como aconteceu, que não era de todo (não é?) inevitável. Tínhamos a experiência e conhecíamos soluções de outras cidades que lidam com estes problemas há décadas. Eventualmente o fenómeno do alojamento local por reserva online, que foi mais ou menos transversal e simultâneo aos vários países, terá surgido sem préaviso. Mesmo assim, várias cidades já definiram modelos de regulação para este fenómeno, no sentido da defesa da habitação permanente.
Aqueles que acham que isto é um assunto do centro e dos seus moradores, lembrem-se que os preços estão a subir na cidade toda [3], e a oferta de habitação para arrendar a descer drasticamente. Só em 2015 houve uma diminuição de 21% [4] na oferta de arrendamento. Se o problema começou por ser no centro histórico neste momento é geral e alastrou a toda a cidade.
Qual é o problema dos habitantes saírem das zonas centrais da cidade? Estas zonas não são melhores nem piores do que bairros menos centrais ou periféricos, mas é aí que muitas pessoas viveram uma vida inteira, e é esse o lugar que outros tantos escolheram para viver. Falamos de direito ao lugar mas também de direito à cidade.
Qual é o problema do preço da habitação subir em Lisboa? Como sabemos, uma subida deste tipo implica uma imediata e objectiva perda de poder de compra por parte dos habitantes da cidade.
Mas se a origem do problema é o turismo, são as opções politicas recentes, expressas na legislação e numa agenda de promoção turistica aparentemente sem planeamento, que estão efectivamente a contribuir para os problemas que apontamos acima. Governo e CML continuam a sublinhar os benefícios trazidos pela indústria do turismo, o seu papel na dinamização do mercado imobiliário, no investimento em reabilitação urbana, na geração de emprego e no impulsionar da economia, ignorando, na nossa opinião, os efeitos colaterais e a sua responsabilidade na gestão dos interesses da cidade e dos seus habitantes. Pelo contrário, temos assistido a uma facilitação e até mesmo incentivo das dinâmicas mais agressivas de mercado geradas por investidores imobiliários de capacidade de investimento impossível de acompanhar, ou superar, pela larga maioria dos actuais residentes.
Neste sentido, o actual executivo da CML, tem vindo a alterar a sua posição face às politicas de habitação previstas para o centro da cidade. No caso concreto da Baixa, por exemplo, este executivo prometeu, na campanha do primeiro mandato, trazer jovens moradores para a Baixa e fazer cumprir a lei dos terços (1⁄3 habitação; 1⁄3 comércio; 1⁄3 serviços). Contrariamente a estas intenções, e até à data, as únicas intervenções da CML na zona da Baixa de que temos conhecimento são os licenciamentos de diversos hóteis. Apontamos também, o Programa de Renda Acessível (PRA), apresentado pela CML o mês passado, que prevê a construção ou reabilitação de 5 a 7 mil fogos disponibilizados a rendas controladas, mas evita as zonas de Lisboa mais bem servidas de transportes ou serviços, onde o imobiliário está mais valorizado. Sabemos que a CML é, com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, um dos grandes proprietários da cidade, com inúmeros edifícios no centro que têm sido vendidos a privados. A alienação consecutiva de património no centro, simultânea à criação de zonas habitacionais, de iniciativa camarária, em bairros não centrais, revela um programa para a cidade que está a contribuir para a deslocação das classes médias e mais desfavorecidas (que aí ainda subsistem) para fora das áreas centrais.
Paralelo com outras cidades
Veneza, que recebe cerca de 20 milhões de turistas por ano, é um dos casos em que não se legislou de forma a proteger a habitação permanente e em que a população diminuiu para menos de metade, de 120mil para 55mil, nos últimos 30 anos. No decorrer deste processo, lojas e estabelecimentos inclusivamente de ensino e saúde que davam resposta à população local, têm vindo a ser substituídas por espaços para compra de souvenirs e pastelarias, por exemplo. O número de cinemas, por exemplo, desceu de 20 para 2. Sabemos que a diminuição da população de Veneza, tal como a de outras cidades, não se deve exclusivamente ao turismo, e que o fecho de espaços destinados ao uso, e ao serviço, das populações locais é muitas vezes consequência e não necessariamente a causa, de uma diminuição significativa dos habitantes permanentes. Mas, neste momento, a situação é “de pescadinha de rabo na boca” na qual o turismo tem um papel central [5]. Segundo um artigo do The Independent, alguns cientistas sociais prevêem que em 2030 Veneza não terá qualquer habitante permanente.
Em Barcelona (talvez a cidade mais parecida com Lisboa nestas questões), a presidente da câmara Ada Colau assinou em Julho de 2015 uma moratória para suspender, por um ano, as licenças para hotéis e outros empreendimentos turísticos (foram parados 45 projectos). O objectivo foi estudar o impacto do turismo na cidade, e assim poder tomar decisões adequadas àquela que é a situação actual da cidade.
Em Cinque Terre, em Itália, património mundial da Unesco desde 1997 que junta cinco pequenas aldeias, as autoridades querem limitar o número de turistas a 1 milhão e meio por ano, diminuindo em 1 milhão as visitas de 2015. Só será possível um turista visitar a região adquirindo bilhete.
Em França, já desde os anos 50, foi desenhada uma estratégia de turismo descentralizado baseado na cultura. Foram criados festivais temáticos como o de cinema em Cannes, de fotografia em Arles ou de dança em Montpellier, de forma a não cingir o turismo à capital ou zonas balneares.
Lisboa, em poucos anos, passou a ser uma das cidades mais visitadas da Europa e neste momento a segunda mais saturada com o turismo, depois de Amesterdão.
Enquanto só se falava de crise foi fácil olhar para as recentes transformações da cidade como exclusivamente positivas. Agora que esse discurso deixou de ser dominante, achamos que é urgente recentrar o debate nos efeitos nefastos que estas transformações estão a ter sobre o preço de habitação, e as suas consequências.
Vamos seguidamente analisar o que acreditamos serem as causas deste fenómeno: Nova Lei das Rendas; legislação do Alojamento local; leis dos Reformados e Vistos Gold; licenciamento de novos Hóteis e Hostels.
II. CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS
1. NOVA LEI DAS RENDAS
A Nova Lei das Rendas, em vigor desde Novembro de 2012, introduziu uma série de alterações à antiga lei do arrendamento, permitindo, por exemplo, que um proprietário despeje os seus inquilinos, alegando obras estruturais, tendo apenas de lhes pagar um ano de rendas como indemnização. O que quer dizer que qualquer fundo de investimento ou banco, pequeno ou grande proprietário, pode no seu quarteirão, prédio ou apartamento, após realizar as obras alegadas, transformá-lo num hotel, hostel ou apartamento(s) turístico. Isto independentemente destes edifícios ou apartamentos terem usos anteriores de habitação permanente.
É a combinação desta nova lei das rendas com uma politica camarária sem restrições à atribuição de licenças a unidades hoteleiras ou alojamento local que nos parece constituir um dos fortes motivos para a atracção de investidores e especuladores nacionais e internacionais.
2. ALOJAMENTO TURÍSTICO
Segundo o Arnaldo Muñoz, director ibérico da Airbnb (maior site de alojamento local a nível mundial), existiam em 2015 nesta plataforma, 12 mil casas listadas na grande em Lisboa (mais 60% que em 2014) [6]. A recentemente criada Associação de Alojamento Local de Portugal (ALEP), afirma que nascem na capital cerca de 200 novos alojamentos locais por mês [7].
De onde vêm estas casas? Não sabemos quantas, mas com certeza grande parte destas habitações saíram do mercado de arrendamento permanente. Inicialmente, sites como o airbnb tinham como objectivo pôr em contacto habitantes que queriam alugar temporariamente a sua casa ou um quarto a visitantes e turistas, criando uma rede de turismo "sustentável" numa lógica de economia partilhada.
Hoje a grande maioria destas casas são concebidas especialmente para serem alugadas exclusivamente a turistas. Algumas pertencem a pequenos proprietários que com a crise largaram a sua habitação permanente, para equilibrar as contas, outras, cada vez mais, são de médios e grandes proprietários ou investidores. Muitas destas casas funcionam num sistema de subaluguer. O governo anterior fixou o imposto sobre este tipo de arrendamento em valores muito mais baixos do que o imposto sobre arrendamento permanente, ou seja, não só é mais rentável alugar a turistas como se paga menos impostos.
Todos os dias chegam notícias de outras cidades que, ao serem afectadas pela subida de preço na habitação devido ao turismo, legislaram o alojamento local: em Paris e Barcelona só é possível um proprietário alugar a sua primeira morada e por um período máximo de 120 dias, em Londres por 90 dias; e em Berlim e Nova Iorque só se podem alugar apartamentos nos quais também morem os proprietarios, ou seja, só se podem alugar quartos, permitindo assim o acolhimento de turistas sem a saída dos habitantes permanentes.
Em Lisboa, sabemos que cerca de 75% dos anúncios disponíveis no Airbnb são casas inteiras e apenas cerca de 25% são quartos. A sua localização é mais concentrada no centro mas, como se pode ver no gráfico (e no site https://www.airdna.co), está já disseminada pela cidade inteira. O fenómeno do alojamento local contribui em Lisboa, como tem contribuído em diversas cidades, para a subida dos preços de arrendamento e para a escassez na oferta. Só a sua regulamentação poderá alterar esta situação.